as casas de dentro . 2022

As Casas de Dentro é um projeto de autoria de Rafael Baldam e Bruno Geraldi Martins, de intervenção urbana que combina ilustração, poesia e espaço urbano para refletir sobre sensações e sentimentos que guardamos dentro da gente, dentro de nossas casas e cidades. Este projeto foi vencedor do edital Ocupa Atibaia 2022, organizado pela Incubadora de Artistas e executado entre 9 e 15 de Maio de 2022 na cidade de Atibaia/SP, onde deve ficar por tempo indeterminado. 

Esta intervenção consistiu na implantação no espaço urbano de 10 ilustrações baseadas em plantas arquitetônicas. Estas plantas foram desenhadas em grande escala, aproximando-se do tamanho real, como se fossem ser construídas de fato. As técnicas de implantação foram 5: pintura no chão, adesivos transparentes impressos, lambe-lambe, construção com galhos e gravetos e impressão em lona. Cada uma das ilustrações foi implantada em um lugar específico da cidade, que guarda relações com a planta escolhida e com o trecho de um poema que acompanha cada uma das intervenções. O poema foi seccionado em 10 estrofes e distribuído juntamente com as plantas arquitetônicas, formando assim a tríplice do trabalho: o poema, a planta arquitetônica e a localização na cidade. A união desses três pontos configura o significado de cada uma das 10 intervenções, e assim a formação do todo a partir de suas partes. Foi montado um mapa localizando todas as intervenções e suas respectivas plantas arquitetônicas e trechos do poema, para que o público pudesse ter uma visão do todo no mapa da cidade e assim planejar sua visita, que pode ser feita em qualquer ordem.

O CONCEITO

Em 2020, a partir da leitura de “A Poética do Espaço” de Gaston Bachelard, “Habitar” de Juhani Pallasmaa e “As Durações da Casa” de Júlia de Souza, comecei a investigar a “casa” como um elemento poético. Me interessava o espaço do abrigo, do lar, da morada como objeto além-arquitetônico, ou seja, um objeto que guardaria histórias, segredos, místicas, coisas invisíveis. Então desenhei mais de 100 ilustrações de plantas arquitetônicas que comunicassem, através da sua geometria e da imaginação do espaço decorrente, uma sensação, uma questão, um incômodo. Estas ilustrações geraram a série Moradas

Quando surgiu o edital da Incubadora de Artistas para ocupar o espaço da cidade com uma intervenção artística, esta pesquisa já iniciada foi formatada como As Casas de Dentro. Tais “casas” figuram como espaços internos da nossa mente onde guardamos nossos desejos, segredos, são nossos becos sem saída, nossos sótãos e porões dentro da gente. São lugares em que guardamos nossas memórias, nossas próprias vidas. As ilustrações de plantas arquitetônicas, então, poderiam ser uma metáfora para estes nossos espaços internos, como se nós abrigássemos dentro de nós várias casas invisíveis. Estas diversas casas que carregamos em nós podem ser vistas sob este prisma poético, mas também, de forma mais literal, remete à memória das casas nas quais vivemos, visitamos, desejamos e tememos. Ao longo da vida lembramos da casa de nossos pais, a casa em que crescemos, a casa dos avós, a casa dos sonhos, casas em que fomos felizes ou tristes, casas pelas quais passamos e que marcaram em nós um sentimento. Estas duas formas de encarar as “casas de dentro” são válidas e se sobrepõem. 

Nesse sentido, As Casas de Dentro é um projeto que coloca para fora estas arquiteturas internas, como se construísse na cidade uma segunda cidade feita de arquiteturas enigmáticas e translúcidas. Complementando as ilustrações, o poema escrito e seccionado em 10 partes também fala sobre espaços, desejos, sobre encontrar-se e perder-se. O texto compõe ao lado das ilustrações formando um tensionamento da planta arquitetônica e do local de implantação da intervenção.  

O PROCESSO

A primeira etapa do projeto de As Casas de Dentro foi um passeio pela cidade de Atibaia. Guiados pela ideia da deriva, eu e Bruno percorremos a cidade atentos para o significado dos espaços e como eles poderiam relacionar-se com o poema e com as ilustrações. Após este levantamento, foram selecionadas as ilustrações e os trechos do poema, de modo que a triangulação entre localização, ilustração e poema fosse feita. Com esta relação de espaços, ilustrações e trechos do poema feita, pensamos nas técnicas de execução.

Cada lugar escolhido já insinuava uma técnica que encaixaria melhor naquele espaço. Um caso específico foi o lago, que quando nos deparamos com ele sabíamos que uma das plantas arquitetônicas teria que ser refletida na água. Durante um mês preparamos o material gráfico (fichas de identificação A4, impressões para lambe-lambe, impressões adesivas) e o material para execução (ferramentas como pinceis, tintas, fitas adesivas, faixa de isolamento, etc). O trabalho foi executado por mim e Bruno entre 9 e 15 de Maio, com trabalho diário das 8h às 19h. 

AS CASAS

A CASA FINAL

Cemitério


O cemitério é a nossa casa final. É também um espaço cheio de tabus, que nos causam medo do desconhecido. É lá que os sonhos descansam, é onde nos despedimos. A morte é uma passagem desconhecida. O portão de entrada do cemitério tem uma carga simbólica grande por ser o elemento de entrada e saída, um divisor entre mundos. É um espaço marcado por conceitos como “limite” e “fronteira”; a inacessibilidade característica da transposição entre vida e morte. Um caminho sem volta. 


“Onde você guarda seus sonhos?

em quais gavetas sem fundo dorme seu futuro?

se o quarto se desfaz em neblina,

suas paredes afundam”

A CASA ESQUECIDA

Terreno da futura sede do Centro da Terceira Idade


Este é um lugar revelado após um “distanciamento” da cidade, há um tipo de abandono ali. A passagem do tempo é mostrada por uma pequena ruína no terreno, que está destinado a abrigar a nova sede do Centro da Terceira Idade. Este local foi escolhido como forma de marcar a posição que a terceira idade ocupa na sociedade, a do esquecimento. A planta escolhida também reflete a ideia de passagem do tempo, a espiral, o crescimento, o fim no centro da casa. 


“aquilo que deseja

se perde na bruma.

Dentro da gente, uma casa

incômodos móveis

abrigo sem forma fixa”

A CASA SAGRADA

Rotatória próxima à Igreja do Rosário


A religião é uma instituição social vinculada à ideia de abrigo, de proteção; igrejas católicas são comumente chamadas de Casa do Senhor. Há aqui a ideia de casa divina, como uma casa superior, onde vamos para pedir ajuda e arrepender-se. A igreja tomada como casa, implica em tornar esta casa sagrada, retirá-la do plano humano e realocá-la num plano de busca pela salvação humana. É significativo que as duas igrejas estejam em linha reta, uma de frente para outra, de modo que a planta escolhida, colocada entre as duas, pode enfatizar este aspecto. A busca busca pelo divino também se apresenta na planta escolhida, que se constrói a partir da geometria áurea, vinculada na antiguidade à perfeição matemática e uma aproximação do divino através do desenho e da lógica. A espiral que esta planta sugere, remete também a um caminho para dentro de si, busca que também se liga a ideia do divino.


“fundação sob a pele

onde mora o além de si

na busca a gente

se perdencontra.”

A CASA DO DESEJO

Início do Escadão


Aqui, a Casa do Desejo está representada por um Escadão, como um caminho que deve ser percorrido para alcançar aquilo que se deseja. Esta Casa é aquele lugar dentro de nós que guardamos nossos desejos, anseios e sonhos. Localizar a ilustração no pé do Escadão é simbólico por ter à sua frente todo o caminho e todo o trabalho necessário para superar esta subida. 


“Perder-se no mapa

encontrar-se no verbo

errar de veia as águas das ruas”

A CASA ESPELHO

Parque das Águas


A água é um elemento simbólico muito forte no imaginário humano. Antes de nascer estamos imersos em um líquido, assim a escolha desse espaço também se conecta com a ideia de natureza, de origem. A água também reflete, o que faz dela uma superfície para vermos quem somos. No entanto, por ser disforme, a água distorce nosso reflexo, nos mostra uma versão líquida de nós. A água também se relaciona com conceitos como fluxos, transitoriedade, correnteza, limpeza, afogamento, inundação. Estas ideias, se levadas como metáforas para a vida mental, se aproximam de sensações (como contemplação, agonia, nostalgia, sonhos, pesadelos) que vivemos todos os dias e guardamos nessa Casa de Dentro feita de água e espelho. Há ainda o aspecto de descobrimento que esta CASA causa, para quem olha a partir da rua e percebe o reflexo da planta no lago.


“A casa de dentro

na cidade translúcida

monta sobre si uma segunda

projeção do querer.”

A CASA VISTA

Cine Itá


As janelas do Cine Itá dão vista para a parte baixa da cidade. Permitir a visibilidade da cidade é importante pois é uma forma de habitá-la, é vê-la em seu conjunto, compreender o todo no qual se está permanentemente imerso. Nesse sentido, as ilustrações das CASAS que figuram nesse espaço funcionam como os “monumentos de vidro” que o poema sugere: são monumentos internos (representações de casas interiores e subjetivas) colocados no espaço da cidade como fantasmas, ou casas sem paredes. Ao colocar as ilustrações nas janelas de vidro e observar a cidade através delas, percebe-se que as CASAS de dentro enquadram uma quantidade de casas reais que podem ser vistas à distância, como uma metáfora da ideia de que AS CASAS DE DENTRO são muitas e se sobrepõem às casas materiais.


“Do fundo das gavetas do peito

o desenho de uma casa

impossível nos habita

empurra para fora

monumentos de vidro.”

A CASA CEGA

Muro próximo à praça da Matriz


A questão que se coloca aqui é a obstrução da visibilidade. Este muro (um elemento tão banal em qualquer cidade) aqui impede a visão da totalidade da cidade, que está escondida atrás dele. Olhar a cidade, ter acesso visual aos espaços é uma forma de habitá-los. O muro impede esta casa de existir. Esta intervenção também pode ser lida como uma crítica à privatização do mirante pelo café, e o impedimento ao acesso visual que ele carrega.


“Encara sua neblina

para ver o redor liquefeito,

infiltra sob a pele,

onde mora o que deseja.”

A CASA VAZIA

Estacionamento


De forma a denunciar sua importância e abandono, a distância entre a sua possibilidade de ser casa e a impossibilidade do público de adentrar o estacionamento, faz da obra uma casa inalcançável, como uma memória já esquecida que gostaríamos de ter presente. Faz parte da intervenção lançar olhares para espaços esquecidos, aparentemente sem importância na cidade, e assim refletir sobre estes resquícios de casas que ficam pelo caminho. Este espaço se comunica com a ruína da fachada localizada na rua da frente (aqui vemos os fundos dessa ruína). Desse modo, esta CASA também é um olhar para o vazio do espaço íntimo da casa em ruínas, de modo que estas duas intervenções funcionam como um díptico.


“Seu inalcance faz

do lugar uma desfigura.

Distância é o corpo pela metade,

é o corte por onde se esgueira o olhar

quando aqui é âncora.”

A CASA DA MEMÓRIA-PRISÃO

Museu da Cidade (antiga prisão)


Este espaço tem uma simbologia forte por ter sido uma prisão e hoje ser um museu. Quando prisão, este edifício era a casa de detenção, onde moravam os indesejáveis, aqueles dos quais quer-se distância. Era a casa do erro. Quando museu, este mesmo espaço se torna a casa da memória, um lugar que detém o tempo de passar, e assim, de certo modo, ainda é uma casa prisão.


“Na bruma cega alcança em falso

o contrário do querer,

toca o que já foi.”

A CASA EM RUÍNAS

Fachada em ruínas


As ruínas têm um lugar simbólico nas cidades, elas marcam os lugares esquecidos, os lugares em progressiva decomposição, são como esqueletos de lugares. No entanto, como não abrigam e também não são eliminados, são lembretes permanentes da decadência. Aqui, a intervenção pode ser feita em menor escala, respeitando o estado construtivo da fachada, sem a intenção de degradar mais ainda a ruína.


“Desmonta a casa que já não abriga,

responde com o verbo

que vai encontrar na fundação de si.”